A filiação socioafetiva representa um dos mais significativos avanços do Direito de Família contemporâneo, consolidando a primazia do afeto sobre o vínculo biológico como elemento constitutivo da parentalidade. No Brasil, sua construção jurídica decorre de um processo de reconhecimento doutrinário, jurisprudencial e, mais recentemente, normativo, que visa adequar as normas jurídicas à realidade social das […]
A filiação socioafetiva representa um dos mais significativos avanços do Direito de Família contemporâneo, consolidando a primazia do afeto sobre o vínculo biológico como elemento constitutivo da parentalidade. No Brasil, sua construção jurídica decorre de um processo de reconhecimento doutrinário, jurisprudencial e, mais recentemente, normativo, que visa adequar as normas jurídicas à realidade social das famílias.
O reconhecimento da filiação socioafetiva encontra alicerce em princípios constitucionais fundamentais, dentre os quais se destacam:
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, III, CF/88): Este princípio, matriz de todo o ordenamento jurídico, impõe que o indivíduo seja tratado em sua integralidade, abrangendo sua dimensão afetiva e a forma como ele se constitui e se sente parte de uma família. A negação do vínculo socioafetivo seria uma afronta à identidade e à dignidade do indivíduo.
Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente (Art. 227, CF/88 e ECA): A proteção integral da criança e do adolescente exige que o sistema jurídico priorize o ambiente familiar que melhor garanta seu desenvolvimento físico, psíquico, moral, espiritual e social. Muitas vezes, esse ambiente é fornecido por pais socioafetivos, que exercem de fato a função parental.
Princípio da Afetividade: Embora não expressamente previsto na Constituição, o princípio da afetividade é amplamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência como um valor jurídico implícito, que informa as relações familiares e serve de base para a interpretação e aplicação das normas. É o afeto, a convivência e o mútuo reconhecimento que edificam o vínculo socioafetivo.
Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM): Diversos enunciados do IBDFAM têm contribuído para a consolidação da tese da filiação socioafetiva, reforçando a importância do afeto nas relações familiares.
A formação do vínculo socioafetivo não se presume, mas deve ser comprovada a partir de elementos que demonstrem a efetiva assunção do papel parental e o reconhecimento recíproco. Tradicionalmente, são considerados os seguintes requisitos, que configuram a posse do estado de filho:
Tractatus (Trato): Refere-se à maneira como a relação é tratada no dia a dia. Envolve a convivência contínua, o cuidado, a educação, a assistência moral e material, e a demonstração pública de afeto e responsabilidade parental. É a demonstração fática do exercício da parentalidade.
Nomem (Nome): Embora não seja um requisito absoluto, a utilização do sobrenome do pai ou mãe socioafetivo pelo filho, ou a simples inclusão no rol de familiares, é um indicativo forte do reconhecimento da filiação.
Fama (Fama): Diz respeito ao reconhecimento social do vínculo parental. A relação é conhecida e aceita pela comunidade, pelos amigos, familiares e demais pessoas do convívio, como se fosse uma filiação biológica ou legalmente adotada.
O reconhecimento da filiação socioafetiva pode ocorrer por duas vias principais:
Via Judicial: Historicamente, a via judicial era a única forma de reconhecimento. Mediante ação declaratória de filiação socioafetiva, a parte interessada (o filho, o pai/mãe socioafetivo ou seus herdeiros) pleiteia o reconhecimento do vínculo, apresentando provas do trato, nome e fama. O juiz, após análise do conjunto probatório, profere sentença que tem efeitos constitutivos (cria o vínculo) e declaratórios (reconhece uma situação fática preexistente). A sentença transitada em julgado é levada ao cartório para averbação no registro de nascimento.
Via Extrajudicial (Provimento nº 63/2017 e 83/2019 do CNJ): Uma importante inovação foi a possibilidade de reconhecimento da filiação socioafetiva diretamente nos cartórios de registro civil, sem a necessidade de processo judicial, conforme estabelecido pelo Provimento nº 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), posteriormente alterado pelo Provimento nº 83/2019.
Requisitos para o Reconhecimento Extrajudicial:
– O reconhecimento pode ser feito por pessoa maior de 18 anos, independentemente do estado civil, desde que haja a manifestação de vontade do filho, se maior de 12 anos.
Uma vez reconhecida, a filiação socioafetiva produz os mesmos efeitos jurídicos da filiação biológica ou adotiva, em observância ao princípio da igualdade entre os filhos, previsto no Art. 227, § 6º, da CF/88. Dentre os principais efeitos, destacam-se:
Direitos Sucessórios: O filho socioafetivo adquire o direito de ser herdeiro do pai/mãe socioafetivo e vice-versa, com os mesmos direitos e deveres de um filho biológico.
Direitos Alimentares: Pode haver a obrigação de prestar alimentos (pensão alimentícia) ao filho socioafetivo, caso comprovada a necessidade e possibilidade.
Direitos Previdenciários: O filho socioafetivo pode ser considerado dependente para fins previdenciários, garantindo o acesso a benefícios como pensão por morte.
Uso do Nome: O filho socioafetivo tem o direito de incluir o sobrenome do pai/mãe socioafetivo em seu registro de nascimento, podendo, inclusive, retificar seu nome para incluir ou substituir sobrenomes.
Poder Familiar e Deveres Recíprocos: O pai/mãe socioafetivo passa a exercer o poder familiar, com todos os direitos e deveres inerentes à paternidade/maternidade, como o dever de guarda, sustento, educação e convivência familiar, e o filho adquire deveres recíprocos de respeito e assistência.
Multiparentalidade: O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060/SC (Tema 622 da Repercussão Geral), com repercussão geral reconhecida, firmou a tese de que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. Isso significa que um indivíduo pode ter dois pais e/ou duas mães no registro (por exemplo, um pai biológico e um pai socioafetivo), gerando para o filho todos os direitos e deveres de ambos os vínculos.
A filiação socioafetiva, portanto, não é mera liberalidade, mas um direito fundamental que reflete a realidade das relações familiares contemporâneas, nas quais o vínculo afetivo é reconhecido como o alicerce da parentalidade, conferindo segurança jurídica e dignidade aos indivíduos.
Dra. Susane Pacheco Galindro – OAB/SC 74.106
Advogada, Especializanda em Direito das Famílias e Sucessões, parceira da Sventnickas Advocacia.
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